Sempre digo que as obras de um artista é, de forma abstrata ou não, um autoretrato.
Sempre é.
Dia desses fiz um análise de minhas composições, e me surpreendi com algumas conclusões.
Lembro do amigo e compositor Christofer Perin, que antes de tocar suas canções, não se furta de explicá-las. Não costumo explicar dos porquês, mas às vezes falo de algumas motivações. Engraçado, é que muito do que componho, não faz tanto sentido na hora. Só descubro o que realmente gostaria de expressar algum tempo depois. O processo de maturação da canção traz consigo algumas explicações sobre ela. Daí penso nas aulas de literatura, onde não raro, você deve interpretar o artista. Como se pode interpretar o artista em 30 minutos, se o artista demorou anos para interpretar a própria arte?
Há canções onde fica tudo muito claro, porém há outras em que seus significados tornam-se uma grande surpresa.
Também não vou aqui ficar explicando os porquês das minhas músicas, mas quero comentar uma em especial.
Há poucas canções que tenham sido compostas para pessoas, algumas para algum tipo de relação com alguém, ou por conta de determinada postura de alguém, mas poucas foram compostas pensando em alguém especial. Salvo algumas exceções como “Ao amigo poeta” para o caro amigo e parceiro de composições Francisco e “Alice” para a amiga de mesmo nome, que são canções de amizade que foram feitas para dar de presente.
“Do Vulto” que foi resultante de uma longa e triste conversa sobre violência e desesperança com minha amiga Camila Laguno, e depois ganhou esse nome pelo apreço do amigo Jocemar, (vulgo Vulto) pela canção. Ou “Alvoroço” que compus pensando em ouvi-la na voz da Camila Cartana, e incrível como ficou boa a canção em sua voz.
Mas nada disso é surpresa até então. O que realmente me causou estranheza foi a “Senhora do tempo e da razão”. E esta sim, merece explicações.
Essa música surge de um encontro muito cotidiano. Lembro claro dessa época, e lembro-me de algumas pirações que me fazem contorcer de tanto rir. Era costume encontrar os amigos no fim de tarde para um chimarrão bagualudo. O ponto de encontro era as escadas da Biblioteca Pública Municipal, em Cachoeira do Sul, e evidentemente que o violão era o convidado mais importante. Não era possível tomar o “chimas” da tardinha sem o violão. Talvez sem o mate, mas sem o violão nem pensar. Nessa tarde, eu e Francisco falávamos sobre coisas relevantes da época, como bandas que revolucionaram nossas vidas e sobre nossas desventuras com o sexo oposto. Após um tempo aparece um dupla de Diego’s , o Frodo e o Alemão, o segundo munido de alegria, portando o nosso amável instrumento de seis cordas. Era o violão do Igor, que mais parecia um brinquedinho de criança de tão pequeno. E entre uma canção e outra, começa a surgir a primeira canção que Francisco e eu compomos juntos. Da calçada nasce o verso “Senhora do tempo e da razão, dona do céu, dona do mar, que pelo tempo voa”.
Após chegar em casa, terminei a canção, que por hora era só uma obra de ficção.
Durante muito tempo, esse foi o significado da canção – Uma obra de ficção, que possivelmente expressava nossos anseios por um amor ou algo do tipo.
Passado mais de quatro anos deste evento cotidiano, conheci em um momento bem especial, na Ilha da Magia, a Letícia, minha senhora do tempo e da razão. Tanto tempo depois de nascer, a canção se fazia valer em essência. Deixava de ser apenas uma obra de ficção para ter um sentido prático, digamos assim.
Tanto tempo depois de ter imaginado-a, conheci a senhora. Nos conhecemos, nos apaixonamos, vivemos nossa paixão, terminamos a relação, nos tornamos amigos e a canção continua aí, agora fazendo muito sentido e trazendo boas lembranças.
Imagine você, se dando conta de que compôs uma obra, pensando em alguém que viria a conhecer mais de quatro anos depois!
E depois, querem interpretar o artista em 15 minutos em uma aula de literatura.